TODAS AS
TURMAS – QUARTO BIMESTRE
AMIZADE E FILOSOFIA
A
palavra filosofia no original grego significa “amor pelo saber” e o filósofo é
considerado um “amigo o saber”. A partir desse conceito é possível fazer um
percurso sobre o pensamento de diversos pensadores e sua compreensão do que é
Amizade.
A
raiz da palavra, na língua latina se
escreve: amicitia e significa:
“sentimento recíproco entre duas pessoas desprovido de caráter sexual e
estabelecendo-se sob o signo da igualdade e do respeito aos mesmos direitos e
deveres”. Existe um diálogo latino que define amizade como sendo a arte da de
tornar as pessoas iguais.
Na
língua grega, três palavras estão na raiz do termo amizade:
1)
Philia esta
palavra foi utilizada pelos gregos para definir o amor vivenciado dentro da
família, isso significa dizer um amor desinteressado. Os pais amam os filhos e
estes amam os pais de modo desinteressado e sem pedir nada em troca.
2)
Eros esta
palavra foi usada pelos gregos para conceituar a amizade que termina com
reciprocidade sob o ponto de vista da sexualidade. Neste caso duas pessoas
mantém uma relação de amizade que é alimentada pela reciprocidade e entrega de
um para o outro na dimensão da sexualidade.
3)
Ágape – Esta
definição de amizade foi entendida também como amor que se doa de modo
incondicional. Neste caso trata-se da amizade de modo espontâneo, que se
preocupa com o outro sem esperar nada em troca.
O
mais importante conceito sobre AMIZADE conhecido até a atualidade se encontra
num diálogo de Platão com o nome de “O
Banquete”. O diálogo acontece durante um banquete oferecido pelo poeta Agaton aos seus amigos, cuja finalidade
era se entreterem sobre o amor da ciência e do belo. Durante o banquete cada um dos participantes
faz um elogio à amizade. Um dos mais importantes convidados do banquete era
Sócrates, que ao fazer uso da palavra faz um elogio da beleza e fala sobre o
amor e amizade dizendo que o ser humano evolui na compreensão da amizade passando primeiro pela admiração do corpo, em
seguida pela amizade da alma, depois pelas boas obras humanas em seguida ao
amor pela ciência e a sabedoria. Segundo Sócrates a verdadeira amizade é o
desejo de imortalidade aspiração da beleza em si mesma. Ele garante que o amor
manifestado ao que é sensível só será realmente verdadeiro quando levar as
pessoas ao amor espiritual. Esta forma de amizade é conhecida na atualidade
como “amor platônico”.
Aristóteles
trata da amizade na obra: “Ética a Nicômaco”, neste texto o filósofo garante
que a cidade ideal é construída tendo por base a amizade. Segundo ele, qualquer
construção depende de boas amizades e isso é forma mais genuína de justiça.
Para Aristóteles existem três formas de cultivar amizade: A primeira é uma
disposição de caráter e, portanto, só acontece entre pessoas boas; A segunda
voltada para o prazer. Neste caso envolve a sexualidade; A terceira voltada
para a utilidade e neste caso tem a ver com outros interesses.
De
acordo com este pensamento a amizade desinteressada, que tem a ver com formação
de caráter é mais completa e, portanto,
a melhor. “Os homens bons são aqueles que querem o bem por si mesmo,
eles possuem um caráter bom por essência, não objetivando a utilidade nem o
prazer, são virtuosos do ponto de vista moral, logo têm a justiça como cerne de
suas experiências. Quando duas pessoas com tais características se unem, têm a
pura amizade e por consequência, a genuína justiça. Essa forma de amizade é
mais duradoura porque cria uma barreira contra diversos tipos de calúnia”(
Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol.
01, nº 01, 2014, p 66, ISSN 2318-9614).
Como
a própria nomenclatura, na segunda forma de amizade os sujeitos não são bons
por si, mas estão à procura do prazer e a amizade só dura enquanto durar o que
for prazeroso (sexualidade, bebida, jogos, etc.). Neste caso é praticamente
impossível uma amizade cultivada a distância.
Quando
se trata de amizade por utilidade, os indivíduos não estão próximos porque são
bons, nem porque querem o prazer, mas porque tem interesses. É a pior de todas
as formas de amizade não se fundamenta na virtude e sim nos negócios. Este tipo
de amizade é comum no comércio e na política, é a mais vulnerável e não tem
relação com a virtude.
Para
Aristóteles a amizade verdadeira só acontece entre os iguais, por isso só entre
humanos pode haver amizade verdadeira; Só entre os bons tem amizade verdadeira.
Entre as pessoas de mau caráter não existe amizade, apenas interesses, estes se
juntam para defender suas posições sejam elas econômicas, políticas,
ideológicas e assim por diante.
Por
amor platônico os filósofos antigos entenderam a ligação entre duas pessoas que
acontecia de forma desinteressada, sobretudo desligada das paixões e da
sexualidade, ou seja, cujo fundamento se encontrava unicamente na virtude. Na
idade média os filósofos entenderam amor
platônico como amizade centrada na beleza
do caráter e na inteligência da pessoa, neste caso amor e amizade nada tinham a
ver com as qualidades físicas da pessoa.
O
poeta inglês William Davenant publicou em 1636 uma obra na qual ele afirma que
o amor platônico é a raiz de todas as virtudes e da verdade.
Outros
conceitos foram atribuídos ao longo do tempo para a expressão “amor platônico”
alguns relacionam ao amor ligado à sexualidade e a homossexualidade (masculina
e feminina), neste caso porque segundo alguns esta relação não visa nenhum
outro interesse que não seja o bem estar da pessoa amada.
Como
último conceito de amor platônico tem-se
a explicação que se trata da contemplação da beleza universal e que conduz à
contemplação de Deus. A amizade considerada a partir do corpo não é bela em si
mesma, antes é a imagem refletida da amizade que a pessoa tem pela beleza espiritual,
sendo a primeira um passo para o objetivo final que é a amizade com o sagrado.
Depois
dos conhecidos filósofos socráticos tem-se a manifestação do filósofo Epicuro,
que também viveu na Grécia nos anos 270 a.C. Epicuro foi considerado o filósofo
da amizade, segundo ele: "De todas
as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida, a maior é a
amizade". Reafirma-se aqui a amizade como uma condição primordial para
suportar as dores do corpo e da alma.
Nos anos trezentos depois de Cristo viveu
no norte da África o filósofo conhecido mais tarde no mundo inteiro como Santo
Agostinho. Seus escritos influenciam o pensamento filosófico até a atualidade.
Agostinho de Hipona como foi conhecido teve uma vida desregrada.
Na adolescência experimentou a amizade
no mais puro sentido da paixão corporal. A essa forma de amizade ele mesmo
chamou de corrupção da alma. Reconheceu que sua puberdade foi um tufão que lhe
causou violências sem precedentes e foi buscar sua satisfação em prazeres
infernais entregando-se aos mais tenebrosos amores. Aos 17 anos, viveu com uma mulher durante 15 anos com quem teve
um filho.
Giovani Papini, filósofo cético e
depois católico fervoroso que viveu até
o ano de 1956, fala sobre Agostinho de Hipona e sobre suas amizades afirmando
que as confissões do próprio Agostinho são uma autodenúncia dos horrores que
praticou na adolescência afirmando que as amizades cultivadas por ele não
passavam de entretenimento com pessoas desonestas e de conduta suspeita.
Agostinho afirma que a verdadeira amizade
acontece numa forma de consórcio responsável numa relação de cumplicidade. Nas
suas confissões ele descreve uma ocasião na qual em companhia do grupo furtou
“peras”. Neste caso ele reconhece o
poder da influência do grupo sobre a pessoa. Fica claro na compreensão de Santo
Agostinho o que diz o provérbio popular: “dize-me com quem andas e te direi
quem és”.
Uma vez recuperado das suas façanhas
Agostinho afirma que a verdadeira amizade
é marcada pela caridade que não é possessiva, mas busca o bem do outro.
Depois de ter esta compreensão ele afirma que uma verdadeira amizade leva ao
conhecimento de Deus. Nesta condição ele visualiza a verdadeira amizade
descrevendo com as seguintes palavras: “Se é importante ao homem ter amigos,
sumamente importante, faz-se alicerçar a amizade num amor contemplativo. Este
torna possível aquele. ‘O
amor dos homens em Deus só sabe crescer em profundidade: ele mergulha cada vez
mais em Deus e por isso alarga sua capacidade de amar os homens’. Com base
nesta compreensão Agostinho afirma: “Visite com frequência os amigos, o mato
cresce depressa nos caminhos que não são trilhados”.
A idade média foi marcada por um
período em que as pessoas viviam com os sentimentos á flor da pele, neste tempo
o conceito de amizade esteve associado ao amor avassalador que se manifestava
quase que exclusivamente na relação sexual entre um homem e uma mulher. Quanto
maior mistério envolvesse a relação entre eles, maior seria a atração dos
pares.
Nos anos 1600, o filósofo Rene
Descartes na obra: “As paixões da Alma”, descreve a amizade com as seguintes
palavras: “Parece-me que podemos distinguir o amor em função da estima que
temos pelo que amamos, em comparação com nós mesmos. Pois quando estimamos o
objeto do nosso amor menos que a nós mesmos, temos por ele apenas uma simples
afeição; quando estimamos tanto quanto a nós mesmos chamamos de amizade; e
quando estimamos mais que a nós mesmos denomina-se paixão que pode ser
denominada como devoção. Assim podemos ter afeição por uma flor, por um
pássaro, por um cavalo, porém a menos que nosso espírito seja desajustado,
apenas por seres humanos podemos ter amizade”.
Nota-se na compreensão de Descartes que
o conceito de Amizade é o mesmo defendido por Jesus Cristo: “Amar o próximo como a
si mesmo” como neste caso a compreensão de Descares destaca a amizade com a
compreensão grega de Ágape, ou seja, amor desinteressado. O filósofo da dúvida
metódica também afirma que todas as paixões são boas em si mesmas, o problema é
quando o ser humano faz mau uso delas cometendo excessos.
Por sua vez Emanuel Kant, o filósofo que
desenvolveu a doutrina do criticismo, fala sobre a amizade dizendo que: “A amizade é semelhante a um bom café; uma vez
frio, não se aquece sem perder bastante do primeiro sabor”. Pode-se compreender
o conceito deste filósofo que a amizade precisa ser cultivada, do contrário ela
vai esfriando até deixar de ser importante e necessária. Percebe-se nele o mesmo conceito dado por Agostinho e pelos
filósofos antigos.
Mais que sustentada por um bom sentimento, a
amizade comporta uma ética. “A amizade é uma forma de amor” (Alberoni, 1993). Não
um amor qualquer, mas um processo adulto e sofisticado (Gikovate, 1996),
elaborado, revisado e reforçado pelas circunstâncias que a vida nos ensina. É
um vínculo que faz bem aos envolvidos, fornecendo o caminho para a sabedoria e
a felicidade, tal como pensavam os gregos antigos. Também as recentes pesquisas
indicam os que possuem amigos como sendo mais saudáveis mais felizes ou, pelo
menos, levando a vida com melhor sentido.
Diversos outros filósofos se ocuparam com o tema da
amizade, dos quais se destacam as seguintes afirmações:
“Um grande
amor, só é grande para que nele caiba a possibilidade de não ser grande” (Max
Weber).
“Existirá
algo mais agradável do que ter alguém com quem falar de tudo como se
estivéssemos falando conosco mesmos?”(Cícero).
PRIMEIROS ANOS – QUARTO BIMESTRE
EPICURO:
O FILÓSOFO DA AMIZADE
Epicuro, considerado o filósofo da amizade, afirmou em suas Sentenças Principais: "De
todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida, a maior
é a amizade". Aqui podemos constatar mais um filósofo que trouxe a amizade
como fator primordial à vida. Segundo ele, a amizade, ainda que não nos livre
das dores do corpo e da alma, nos auxilia a suportá-las.
Segundo La Boétie, a amizade é nossa única forma de recusa à servidão, servidão que deriva da vontade humana, impondo-se e nos fazendo esquecer a liberdade do desejo. Por sua vez, Montaigne, em seus Ensaios, ao tratar da amizade, aponta para sua amizade com La Boétie, descrevendo a qualidade e a importância de uma relação dessa natureza: "Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu".
Segundo La Boétie, a amizade é nossa única forma de recusa à servidão, servidão que deriva da vontade humana, impondo-se e nos fazendo esquecer a liberdade do desejo. Por sua vez, Montaigne, em seus Ensaios, ao tratar da amizade, aponta para sua amizade com La Boétie, descrevendo a qualidade e a importância de uma relação dessa natureza: "Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu".
Deleuze, filósofo do século XX, em entrevista para Claire Parnet,
no vídeo O Abecedário Deleuze,
afirma "Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há
um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre
a hora entre cão e lobo, a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos
desconfiar do amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu
desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas é com
tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar
muita graça (...) Ser amigo é ver a pessoa e pensar: 'O que vai nos fazer rir
hoje?'. 'O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?' É isso".
Apesar da filosofia exigir a solidão de pensar por si mesmo (clique aqui e leia), ela
também exige o amigo, aquele com quem se dialoga, aquele que desconfia e de
quem desconfiamos, que questiona, que nos faz pensar. Não há filosofia sem
diálogo.
Deleuze e Guattari, em O
que é a Filosofia?, falam do amigo da sabedoria, que é aquele que pretende
o saber, o pretendente e, portanto, rival do outro. Teríamos deixado de ser o
amigo do outro para sermos amigos do saber e rivais do outro?
Penso que o filósofo precisa ser, concomitantemente, amigo do
saber - no sentido de buscar, de conviver, de dialogar com esse saber que lhe
provoca, espanta, instiga -, e amigo do outro - com quem o diálogo necessário
se estabelece, para que ele não se perca em divagações vazias. Alguns dirão que
este outro são os textos dos filósofos, que nos instigam, provocam, espantam e
com os quais estabelecemos diálogo. Outros defenderão que além de tais outros,
necessitamos do diálogo e da partilha daquilo que amamos com a presença de um
outro, com a convivência, como afirmou Aristóteles.
De qualquer maneira, encontramos, na História da Filosofia, vários
pensadores que apontam para a importância da amizade. É o amigo quem nos
alerta, quem nos provoca a pensar. É também o amigo quem partilha conosco suas
histórias, seu modo de ser, seu cuidado, seu riso. E você, leitor, o que pensa?
A amizade é importante? O que significa, para você, ser amigo? Você tem amigos?
Você se considera um bom amigo? Por quê?
Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 1985.
DELEUZE, G. O Abecedário Deleuze. Entrevista com Claire Parnet. Vídeo.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2001.
EPICURO. Máximas e Sentenças. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
LA BOÉTIE, E. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1999.
MONTAIGNE, M. Ensaios. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
DELEUZE, G. O Abecedário Deleuze. Entrevista com Claire Parnet. Vídeo.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2001.
EPICURO. Máximas e Sentenças. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
LA BOÉTIE, E. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1999.
MONTAIGNE, M. Ensaios. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
SEGUNDOS ANOS –
QUARTO BIMESTRE
A verdadeira amizade em Santo Agostinho
Aurélio Agostinho,
um númida, um africano do norte, filosofando na maturidade de sua fé cristã,
toma a decisão de confessar-se a todo gênero humano[2] e
ousa discorrer sobre um tema já minuciosamente destrinçado em filosofia por
aquela que talvez tenha sido a mente filosófica mais universal dos gregos, a
saber, Aristóteles[3].
Agostinho discorre sobre a amizade. Entretanto, diferentemente do estagirita,
algo genuinamente novo orientou a reflexão de Agostinho: a concepção cristã de
Deus. Nessa linha de pensamento, o bispo de Hipona afirma que só é verdadeira
amizade aquela fundamentada em Deus e cuja união se dá na caridade que é fruto
do Espírito Santo[4].
Antes, porém, de
conceber este conceito luminoso de amizade, Agostinho confessa ter percorrido os tortuosos caminhos da amizade corrompida, do consórcio e da amizade fundamentada na
satisfação do prazer e interesses próprios. Na releitura que fizera
de sua vida, o bispo de Hipona pode ver o que de fato não fora amizade e, com o
auxilio do Cristianismo, pode conceber e cultivar verdadeiras amizades.
1 – Amizade
Corrompida
Agostinho relata,
nas suas Confissões, ter vivenciado, na aurora de sua adolescência, a amizade
ao nível da paixão corporal, ao que ele próprio chamou torpezas e corrupções
carnais de sua alma. Agostinho reconhece que o tufão da puberdade foi nele de
uma violência sem precedentes, a tal ponto que fê-lo buscar satisfação em
prazeres infernais, ousando até entregar-se a tenebrosos amores.
Giovanni Papini viu
nas palavras de Agostinho a autodenúncia de práticas homossexuais. De fato
vêmo-lo relatar, com horror de si mesmo, que nas relações de alma para alma não
se continha em moderação “conforme o limite luminoso da amizade”[5].
Por que carregaria
tanto nas palavras? “Não se trataria de amizade caso se referisse a mulheres
públicas ou honestas, quando Agostinho alude a seus amigos pensa sempre em
homens, e não havia a moda, em seu tempo, de dar-se a uma amante o nome de
amiga. Talvez não fosse fácil, na pequena Tagaste, a um moço muito novo, pobre
e inexperiente, freqüentar casas de mulheres, ao passo que não lhe era vedado
entreter com rapazes de sua mesma idade relações intimas que não despertavam
suspeitas”[6].
Ademais, a
autodenúncia é mais explicita no que vai relatado ao início do Livro III. Aí o
termo também(etiam)[7] é
revelador. Agostinho o usa em alusão à concubina com quem vivera quinze anos e
com quem tivera um filho. As amizades manchadas com torpe concupiscência de que
fala o bispo de Hipona eram, portanto, amizades masculinas.
2 – O Consórcio
Agostinho realça a
distinção dos termos amizade e consórcio, no que tange ao relacionamento entre
pessoas; para ele, o consórcio implica cumplicidade “que nada vale”[8],
ao mesmo tempo que uma pressão psicológica que desrespeita o verdadeiro ser do
outro, travando o crescimento e a conseqüente expansão de sua individualidade.
Assim, no consórcio, o homem age ora fundamentado no desejo de ser louvado
pelos parceiros, ora por medo de proceder diferente, ora pelo prazer de saber
que está cometendo algo ilícito.
Na análise que faz
do consórcio no roubo das pêras[9],
o bispo vê o poder de influência do grupo sobre sua pessoa e realça a
negatividade dessa influência quando confessa que
sozinho não praticaria tal ação[10].
O consórcio é um aguçador dos vícios em detrimento das virtudes, um indutor ao
pecado. Vê-se aí que ele distancia originariamente da amizade.
3 – A Amizade
Fundamentada no Egoísmo
O termo egoísmo,
forjado no século XVIII para significar a atitude de quem dá predominante
importância a si mesmo ou aos seus próprios juízos, sentimentos ou
necessidades, e pouco ou nada se preocupa com os outros é um auxilio para a
compreensão do cap. 4 do Livro IV das Confissões, no qual Agostinho relata a
perda de um amigo seu. Lê-se aí: “minha alma já não podia passar sem ele”. Era
um relacionamento de interesse e não uma relação de alma para alma.
O equívoco do
egoísta é depositar no corruptível os anseios de eternidade. Fundamentada pelo
egoísmo a amizade tende a ruir, se não for alimentada pela atenção do amigo e,
outrossim, se tal amigo não lhe for como uma coisa sua,
domesticada. Agostinho confessa ter atraído esse amigo às suas vacilantes
convicções maniqueístas em detrimento da fé cristã que ele professara quando
adolescente, a tal ponto que chega mesmo a ridicularizar o batismo recebido
pelo amigo em perigo de morte[11].
Verdade é que esse amigo, após uma
recaída em febre, vem a óbito, deixando em Agostinho questões mal resolvidas e
desencadeando-lhe uma profunda crise existencial. Tudo o que via era morte, diz
Agostinho, tinha perdido minha alegria[12].
Tudo tornou-se-lhe fastidioso. Caíra em desespero, aqui entendido como o amor
de si mesmo em sua forma extrema e absoluta[13],
com a ausência do amigo, no entanto confessa que não seria capaz de morrer por
ele, denunciando assim o egoísmo ao mesmo tempo que revelando não se tratar de
verdadeira amizade o relacionamento de interesse que tivera com esse amigo.
4 – A Verdadeira
Amizade
A caridade permeia toda a relação pela ação
do Espírito Santo, quando o fundamento da amizade é Deus. Nisto consiste a
amizade verdadeira, porque somente a caridade não é possessiva, sendo sua
genuína característica sempre buscar o bem do outro, e não há maior bem do que
a própria caridade. Todos os outros bens estão nela contidos[14].
Somente após ter
alcançado o conhecimento de Deus[15] é
que Agostinho pode vislumbrar a possibilidade de uma verdadeira amizade: amar
os amigos em Deus. Com isso, o bispo de Hipona chega às origens do cristianismo
e emerge daí com a convicção de que só é possível uma verdadeira amizade quando
alicerçada por uma caridade contemplativa. Se é importante ao homem ter amigos,
sumamente importante, faz-se alicerçar a amizade num amor contemplativo. Este
torna possível aquele. “O amor dos homens em Deus só sabe crescer em
profundidade: ele mergulha cada vez mais em Deus e por isso alarga sua
capacidade de amar os homens”[16].
Os amigos
verdadeiros, Agostinho sempre os nomeia e dois nomes saltam-se-lhe dos lábios
com mais freqüência nas Confissões, não em detrimento dos outros, são eles
Alípio e Nebrídio, cuja amizade era sustentada por aquela caridade
contemplativa, que não é interesseira[17].
Entretanto, em relação à sua mãe, Mônica, apesar de cantar-lhe com louvor as virtudes,
chegando às raias da veneração Agostinho não amara sua mãe com o amor
contemplativo, não chegara à verdadeira amizade. Nutria por ela profunda
afeição, todavia essa afeição transformara-se em hábito o que redundou em
profundo sofrimento interior quando Mônica veio a óbito[18].
Amando os amigos em
Deus nada se perde, porque Deus não muda[19].
Agostinho canta, com transbordamento lírico, a morte de seus amigos
verdadeiros, confiando na misericordiosa caridade divina, que acolhe todos os
homens[20].
Já não há desespero pela perda, mas sim uma salutar nostalgia que torna
possível fazer com freqüência memória[21] dos
amigos já falecidos. Ademais, há a feliz consciência de que a morte não é
detentora da última palavra no que tange à vida[22].
Considerações
Os amigos
verdadeiros são tesouros de inestimável valor, porque tornam ao homem capaz de
encarar e aceitar sua real condição: a fragilidade humana. A fragilidade
desempenha importante papel na vida humana. É por causa dela que os homens
precisam de amigos. “Não somos fracos nos mesmos pontos” assim, cada um supre e
completa o outro, compensando mutuamente as carências e deficiências, a
fragilidade. Um exemplo luminoso disto, nas Confissões, é Cassicíaco.
Cassicíaco fora sim um cenóbio de estudos e discussões filosóficas, mas acima
disto fora um cenóbio de vida fraterna, um cenóbio de amigos envolvidos por uma
mesma caridade, a Caridade que vem de Deus, que leva a Deus, que é o próprio
Deus.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. 2ªed. Trad. J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
MERTON, Thomas. Novas Sementes de Contemplação. Rio de Janeiro: Fisus,
1999.
_____. Homem Algum é uma Ilha. Trad. Dom Timóteo Amoroso
Anastácio. Campinas: Verus, 2003.
PAPINI, Giovanni. A vida de Santo Agostinho. 3ªed. Trad. Godofredo
Rangel. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
REALE, Giovanni; ANTISERI,
Dario. História da filosofia, vol. 4. Petrópolis:
Vozes, 2006.
[1] Gn
2,18.
[2] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. 2ªed. Trad. J.
Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2009. Livro II, cap.
3, p. 47.
[3] Aristóteles
aborda o tema Amizade em sua obra Ética a Nicômaco.
[4] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro IV,
cap. 4, p. 79.
[5] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II,
cap. 1, p. 45.
[6] PAPINI,
Giovanni. A vida de Santo Agostinho. 3. ed.
Trad. Godofredo Rangel. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Cap. 5, p. 33.
[7] PAPINI,
Giovanni. A vida de Santo Agostinho. Cap.
5, p. 268. “Amare et amari dulce mihi erat magis, si et amantis corpore fruer.
Venam igitur amicitae coinquinabam sordibus concupiscentiae condiremque eius
obnubilabam de tartaro libidinis… Rui etiam in amorem, quo cupiebam capi”.
[8] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II,
cap. 9, p. 55.
[9] AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Livro II,
cap. 4, p. 50.
[10] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro II, cap. 9, p. 55.
[11] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IV, cap. 5, p. 80.
[12] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IV, cap. 5, p. 80.
[13] MERTON, Thomas. Novas Sementes de Contemplação.
Rio de Janeiro: Fisus, 1999. cap. 25, p. 177.
[14] 1Jo 4, 16
[15] O Deus cristão:eterno, imutável, incorruptível, inviolável, uno
(Pai, Filho e Espírito Santo).
[16] MERTON, Thomas. Homem Algum é uma Ilha.
Trad. Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Campinas: Verus, 2003. cap. 9, p. 150.
[17]AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro VI, cap. 16, p. 138.
[18]AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IX, cap. 12, p. 211.
[19] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IV, cap. 9, p. 84.
[20] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IX, cap. 3, p. 192.
[21] Fazer memória aqui quer significar trazer novamente à lembrança.
[22] AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Livro IV, cap. 9, p. 84.
FRASES DE SANTO
AGOSTINHO
Podemos e devemos descobrir Deus no espelho da amizade.
A amizade é um dos elementos mais importantes para descobrir a presença
de Deus, entre nós.
O ser amigo nos funde na amizade do ser; os amigos são uma só alma.
A amizade se expressa na ajuda mútua e na gratidão.
A amizade dilata o horizonte do amor.
A amizade é uma experiência do absoluto de Deus.
A amizade é tão essencial quanto a própria vida.
Na amizade descanso sem preocupação alguma, porque nela eu sinto a Deus.
Não existe verdadeira amizade senão entre aqueles que Deus une pela
caridade.
Podemos chamar o outro de amigo quando confiamos a ele nossas idéias.
TERCEIROS ANOS –
QUARTO BIMESTRE
O
DECLÍNIO DA AMIZADE EM TEMPOS SOMBRIOS (II):
DA
ÉTICA DUAL À ÉTICA COLETIVA
“...Se amas sem despertar amor; isto é,
se teu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco [mas sim ódio], se
mediante tua exteriorização de vida como homem amante não te convertes a homem
amado, teu amor é impotente, uma desgraça”( Marx, K. Manuscritos
econômicos e filosóficos de 1844. São Paulo: Abril Cultural [Os
pensadores], 1985: 32).
“Sou um privilegiado
ser teu amigo”
(do ator Tarcísio
Meira para o ator Tony Ramos).
Mais que sustentada por um bom
sentimento, a amizade comporta uma ética. “A amizade é uma forma de amor”
(Alberoni, 1993). Não um amor qualquer, mas um processo adulto e sofisticado
(Gikovate, 1996)[1], elaborado, revisado e reforçado pelas
circunstâncias que a vida nos ensina. É um vínculo que faz bem aos envolvidos,
fornecendo o caminho para a sabedoria e a felicidade, tal como pensavam os
gregos antigos. Também as recentes pesquisas indicam os que possuem amigos como
sendo mais saudáveis, mais felizes ou, pelo menos, levando a vida com melhor
sentido.
Sócrates, no seu tempo, já
sinalizava para seus discípulos que “os maus não podem amar uns aos
outros” [2]. Esse tipo de vínculo só pode existir
entre homens de bem e entre homens dedicados à sabedoria (Cícero
(1997: p. 83, 120), que, como sabemos, nada tem a ver com aqueles que são
dedicados ao conhecimento científico ou à luta por uma causa
política ou ideológica. Em nosso artigo anterior, não somente distinguimos a
amizade das pseudo-amizades como sinalizamos que na militância (política,
religiosa, etc) não existe espaço para a amizade autêntica.
Para além da questão ética,
Descartes[3] distinguiu a afeição e a devoção da
amizade. É afeição – e não amizade – quando apreciamos algo,
por exemplo, uma flor, uma ave, um animal. “Apreciamos neles algo menos que a
nós mesmos”. Devoção é oposto da afeição, isto é, temos
devoção a alguém que ocupa uma posição superior a nós. Temos devoção a nossos
pais, a um governante, a um rei, a Jesus Cristo, a um ídolo do momento, a um
país, a uma causa. É notória a devoção a ídolos como Elvis Presley ou a Che
Guevara, décadas depois de sua morte. E pode parecer ridícula a devoção a
falsos ídolos, que logo serão esquecidos na história.
No mundo oriental antigo, a
amizade também era muito valorizada. Confúcio (551-479 a.C.) enumerava
cinco tipos fundamentais de relações interpessoais: a relação entre imperador e
súdito, a relação entre pai e filho, a relação entre homem e mulher, a relação
entre irmão maior e irmão menor, e a relação de amizade. As quatro primeiras são
hierárquicas, entre superior e inferior. Somente a amizade é relação entre
iguais.
Castillo (1999) no livro “Educar
para a amizade”, observa que uma das causas da desvalorização da amizade em
nossa época é a trivialização desse conceito. O uso chistoso da expressão “meu
amigo” para dirigir-se a pessoas com as quais não se sente nenhum vínculo
pessoal ou que mal conhece, muitas vezes camuflando interesse instrumental
sobre a outra pessoa, contribui para esta confusão e desgaste do conceito de
amizade.
A verdade é que a amizade é
sustentada por um sentimento espontâneo e desinteressado (consumatório) que
funda um vínculo relacional entre dois seres humanos “bons” dispostos a dar o
melhor de si para o outro e trocar impressões sobre como vê, sente e pensa a vida.
Podemos afirmar que a amizade
demanda, sobretudo, sabedoria entre as pessoas. Sabedoria e não conhecimento,
porque, se a amizade demandasse só conhecimento, as escolas e universidades
seriam solos férteis para fazer amigos. E não são. A universidade contemporânea
não é o espaço de sabedoria, nem do humor, nem da autenticidade, nem do amor,
nem da felicidade. Ela é apenas um espaço de produção e transmissão de
conhecimentos; nesse processo de produção as pessoas são mais ou menos
obrigadas a se relacionarem funcional e profissionalmente. O relacionamento é
acadêmico ou político-acadêmico. Como já dissemos no artigo anterior, as
relações que ocorrem nas instituições e empresas são marcadas pela dessimetria
dos cargos e funções, mas, eventualmente, é possível ocorrer uma ou outra
relação que promete vir-a-ser amizade. Sobretudo nos dias de hoje, a
universidade é, cada vez mais, um espaço de competição (“ou você publica ou
morre”), onde o jogo de interesses é de fundo narcisista.
O exercício da amizade
Embora vivemos numa época em que
é muito mais fácil estabelecer vínculos afetivos, existem pessoas que não
suportam manter as amizades por muito tempo. Há aquelas que vivem se
auto-enganando ter muitos amigos com colegas, funcionários, orientandos e
alunos, e, na verdade, são relações sustentadas por contratos de trabalho
formal ou informal. Existem professores ingênuos e carentes que alucinam nos
alunos, amigos. Nestes casos, o aluno sabe mais sobre a relação do que o
professor. Pela natureza do encontro e a qualidade da situação de trabalho,
parece que os orientadores de pesquisas têm mais chances de fazer do orientando
um amigo, mas há que sempre considerar entre ambos o formalismo do contrato que
sustenta a assimetria dessa relação.
Em termos lacanianos, onde existe
o “discurso universitário” não pode existir uma verdadeira amizade. Como o
professor está preso ao saber instituído, ao paradigma, que é um saber com
referência à tradição do que é ensinado pelos “mestres”, pelos “grandes
autores”, ele tende a reproduzir respostas padronizadas, quase mecânicas,
usadas para escapar da escuta e do conhecimento do outro tomado como pessoa
autêntica. Algo parecido também pode acontecer na posição do capitalista, do
cientista, do médico, do religioso, do militante político: todos eles são
impedidos pela sua condição de fazer autênticas amizades.
Promessa e traição da amizade
coletiva
Herdeiro da revolução francesa, o
ideário socialista prometia à humanidade uma amizade em forma de fraternidade
ou de solidariedade. Todos seriam amigos de todos porque todos viviam sob o
princípio da igualdade. Nós, que sonhávamos tanto com a revolução, sob a
paranóia da ditadura militar, no Brasil, tínhamos certeza de que a grande
amizade entre as pessoas e entre os povos já havia sido instaurada na União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – seria a maravilhosa união das
repúblicas! Afinal, eles tinham conseguido libertar-se da “barbárie”
capitalista e estavam no caminho de realizar o paraíso proletário na terra.
Com o tempo, fomos colhendo
frustrações sobre o “socialismo real” desse e de outros países que teriam
conseguido difundir um clima paranóico em que todos vigiariam todos em nome da
suposta causa da igualdade proletária. A burocracia socialista soviética, por
exemplo, promoveu delatores, separou amigos e fundou uma falsa fraternidade,
que, na vida cotidiana, gerou mais inimigos do que pretendia a intenção da
teoria considerada “científica”.
Embora não se compare a paranóia
desencadeada pelo totalitarismo de direita e de esquerda com os problemas
normais da democracia pluralista (ver filme “Adeus, Lênin”), é a liberdade que
faz as pessoas aproximarem umas das outras e com confiança. Se o totalitarismo
produz desconfianças e inimizades, a democracia “burguesa” tende a levar um
considerável número de pessoas a viverem sozinhas em suas casas e apartamentos,
por insegurança, ou porque o outro está mais ocupado em “mais-ter” do que
“ser”. A indústria e o comércio se aproveitam dessa condição de existência
individualista para sustentar a vida solitária das pessoas levando sua solidão,
sustentando a indústria dos congelados, da entrega das pizzas a domicílio, dos
vídeos, os brinquedos que aliviam a carência sexual, os sites para
encontros virtuais, os serviços telefônicos “disk amizade”, etc.
A sensação de violência das
cidades do nosso planeta tem contribuído muito para aumentar o sentimento de
solidão e a descrença na amizade. H. Arendt, no pós-2ª guerra, havia previsto o
aumento da distância social e da desumanização. Não a desumanização efeito do
totalitarismo, do capitalismo ou do terrorismo, mas outra, que atravessa
invisível no nosso cotidiano banal e cujo sintoma nada investe para
preservarmos as poucas amizades que restam. A antiga “presteza em
partilhar o mundo com os nossos amigos” é deslocada para viver de
“pseudo-amigos”, ou seja, com um animalzinho de estimação ou relações humanas
de faz-de-conta, são tentativas não conscientes de fazer um mundo com algum
sentido para nele viver.
Como existe muita gente no mundo,
e como as relações humanas parecem abundantes em quantidade de encontros
casuais e de bens de consumo, as pessoas hoje têm a sensação de
auto-suficiência, do tipo “eu não preciso dela para viver”. No entanto, as
possibilidades de relações humanas, necessariamente, não se transformam em
qualidade efetiva ou relações de amizade verdadeira, como prevê a dialética. O
espírito humano contemporâneo tornado “líquido” leva-o a conceber a amizade
como mais uma relação instrumental, só para ser usada, consumida, e
logo descartada.
Infelizmente, a amizade morreu
como ocupação principal das pessoas em franca busca pela sabedoria e
felicidade. Hoje, estamos tão vinculados às instituições e às suas obrigações
burocráticas impostas pela “qualidade total” das empresas ou pelo “qualis”
universitário (Silva, 2006); estamos tão presos a uma ética do
lucro e distantes de uma ética da solidariedade, que nos faz cegos para o valor
da amizade e da busca da sabedoria.
A amizade concebida pelos gregos
morreu para dar lugar a relações pragmáticas, impessoais, efêmeras e
superficiais. É verdade que ainda existem amizades que se sustentam em termos
consumatórios, apesar da ambiência social negativa e do pseudo argumento de
falta de tempo ou de condições concretas para verdadeiros encontros. O
esvaziamento da amizade consumatória parece estar fazendo
surgir um outro tipo de relação mediada por interesse de luta por uma causa
comum, ou contra um inimigo comum, ou de união para celebrar um acontecimento
solidário, ou para fazer de conta que, nesse mundo sem coração (Lash, 1991), só
existir amizade mediada por uma causa do bem. Ou seja, temos que nos contentar
com uma “quase-amizade”, um arremedo de amizade, com aqueles que vivem sob o
mesmo guarda-chuva do trabalho, ou que empreendem conosco um projeto de estudo,
ou para jogar bola num clube, ou participar de uma ONG, de um partido político,
ou se ligar aos irmãos de uma fé “x” ou igreja “y”, porque devemos fazer o que
estiver ao nosso alcance para evitar que as pessoas fiquem cada vez mais
individualistas e o mundo cada vez mais sombrio e sem coração.
____________
[2] Voltaire (1978), no seu
dicionário filosófico, irá conceituar a amizade como um vínculo criado entre
pessoas boas, éticas, já que os maus jamais tendem a ter cúmplices para suas
atividades ilícitas.
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